Por Marcus Vinicius Alcântara Kalil
O Governo Federal sancionou recentemente a Lei nº 12.653, criminalizando a exigência de caução para os atendimentos médico-hospitalares de emergência. Entretanto, com todo o respeito, o louvor com que a inovação foi anunciada pelas autoridades e os aplausos com que certos segmentos da sociedade a receberam merecem algumas ressalvas, a fim de que não nos deixemos iludir pela demagogia, tampouco soframos ingenuamente as consequências de uma norma que tende a agravar o problema que se propõe a resolver.
Inicialmente, examine-se a legitimidade da nova lei pela ótica política e constitucional, a partir da qual se pode arguir que, com ela, o Estado visa a transferir para o particular um dever que na realidade é seu: o de prover desinteressadamente serviços de saúde ao cidadão. A esse respeito, relembre-se que, como direito fundamental, a saúde é um direito exigível do Estado, a quem compete colocar à disposição dos indivíduos as prestações materiais prometidas pela Constituição. Paralelamente à garantia do acesso universal à assistência à saúde provida pelo Estado, a Constituição assegura à iniciativa privada a possibilidade de atuação nessa área. Aqui, por meio de relações contratuais privadas, entidades de caráter empresarial prestam serviços médicos e são remuneradas pelos seus pacientes. Nessas relações, em que, pelas circunstâncias próprias da atividade, é comum que o atendimento médico-hospitalar seja imediato e o pagamento da conta médica postergado, é lícito que o prestador exija uma garantia do recebimento de sua remuneração, normalmente constituída por um cheque-caução.
Os hospitais particulares não são obrigados a atender pacientes gratuitamente. A Lei nº 12.653/12, embora não imponha isto textualmente, termina por produzir o mesmo efeito prático, pois impede que os prestadores de atendimento médico emergencial exijam garantias do futuro recebimento de suas remunerações pelos serviços que prestarem, e, com isto, contribui para o aumento da inadimplência no setor.
Sustenta-se assim que a lei sob comento transfere indevidamente encargos do Poder Público para a iniciativa privada e onera injustamente particulares com o aumento do risco de crédito de suas atividades, pelo que restam violados os direitos fundamentais do livre exercício profissional e da propriedade dos que prestam serviços de saúde no regime da livre iniciativa.
Também quanto aos seus aspectos econômicos, a nova lei é merecedora de questionamentos. Em seu site, o Ministério da Saúde a apresenta “como mais uma medida para reestruturar os serviços de urgência e emergência do país”. Segundo o ministro, “a pessoa que abre um pronto-socorro privado tem que saber que antes de qualquer tipo de cobrança, antes de qualquer outro interesse, o que está em primeiro lugar é salvar a vida d[a] pessoa”. Embora bem-intencionado, o raciocínio mostra-se equivocado. No regime da livre iniciativa, o particular que abre um pronto-socorro – ou qualquer outro negócio – está interessado exclusivamente no retorno financeiro desse empreendimento. Ainda que se admita o cabimento da regulação estatal das atividades econômicas visando a coibir abusos, o certo é que, se a atividade não for rentável, não atrairá os investimentos privados necessários ao seu desenvolvimento. Esta é uma lei econômica, inalterável pelas “canetadas” governamentais.
Assim, no caso dos serviços de atendimento médico-hospitalar emergencial, impõe-se notar que, ao onerar tal atividade pelo aumento de seu risco de crédito, a nova lei reduz a rentabilidade dos investimentos no setor, tornando-os menos atrativos para a iniciativa privada. O resultado previsível disso é a diminuição do número de prontos-socorros privados, agravando a crise do setor, ao invés de “reestruturá-lo”, como pretende o Governo, que sozinho não consegue suprir a demanda.
As questões estão lançadas e pedem a reflexão da sociedade brasileira sobre os efeitos que se esperam das medidas governamentais no âmbito das políticas públicas de saúde.
Notas
1 Ensaio publicado no Jornal A Tarde de 20/08/2012.
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